sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Este não é mais o mesmo mundo (de Alma Welt)

Este não é mais o mesmo mundo,
A gente se aborrece, o tédio grassa.
Do mau vinho só restou borra no fundo,
Somos réus ou testemunhas de desgraça.

Não há mais aventuras, só perigos,
Ódios visíveis, mentiras e tensão.
Ficamos, pois, a ver filmes antigos
De olhos fixos na TV, a cabo ou não...

"Ora, Alma, estás muito negativa!"
Diz o vizinho que pedir um ovo veio,
E não para ver se ainda estou viva...

Vou-me hoje para o Sul e já vou tarde,
Já que o tenho no fundo do meu seio,
Onde o vento sopra e a alma arde...
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15/11/2020

sábado, 14 de novembro de 2020

A Selva (de Alma Welt)

Da selva escura de Dante sou vezeira,
Mas do Inferno ainda não vi o Portal.
Ver lobo e leopardo é já normal,
Comigo os levo a passear na feira.

Alma, estás me parecendo bravateira",
Disse um meu amigo bem chegado,
Digo.... na mais funda bebedeira,
Daquelas de dormir com o lobo ao lado.

"Não sabes o que é ver do lobo a goela,
Ou portal que é só fundo de poço
Sem sequer a companhia de uma vela..."

Mas não sei se dou ele minha palma:
Aos delírios não dou o meu endosso,
Se não frutos da minha própria alma...
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14/11/2020
Nota
Presumo que quem não leu a Divina Comédia, de Dante Alighieri (pelo menos os seus primeiros versos) e também quem não teve um amigo alcoólatra, não não compreenderá este soneto.
...

terça-feira, 15 de maio de 2012

Camuflagem Para Vôos Noturnos (de Alma Welt)

Camuflagem Para Vôos Noturnos - desenho de Guilherme de Faria, 1963, coleção Glatt 

 Camuflagem Para Vôos Noturnos (de Alma Welt)

Para encarar vôo baixo mas noturno
Necessito de uma boa camuflagem
Que construo com penas e folhagem
Esperando a meia noite que é meu turno.

Na cabeça uso o rosto da coruja
Que é sempre eficiente e causa medo
O corpo, de um balão o arremedo,
Pois que asa minha força sobrepuja.

Então flutuo e passo a meditar
Na saga do velho MacMurdo
Um escocês de que nunca ouvi falar.

E fico a balançar ao vento oeste
Pois desde que aceitei o absurdo
Espero só a morte, a dor e a peste...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O ser e o nada (de Alma Welt)

Não podemos entender o que é Morte
Tampouco sabemos o que é Vida
A cultura quer trazer algum aporte,
A coisa é o que lhe é atribuída.

Mas se nossos hábitos deixamos
E esquecemos um pouco das lições,
Nada refaz o senso que emprestamos,
Cai o mistério sobre as mínimas ações.

Vede como é fútil o dia a dia,
A passagem das horas é atroz,
Nos debatemos a falar algaravia,

Um código de sons balbuciados,
Mero jogo de crianças nos gramados
Enquanto avança a sombra sobre nós...

(sem data)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Funhouse (de Alma Welt)

Quantos mundos existirão no mundo?
Infinitos, responderei com espanto.
E entre tantos, só já não confundo
O que demônio é... e o que é santo.

Vejo reflexos, ouço ressonâncias,
Fragmentos que formam um mosaico,
Fazendo do real e suas instâncias
Um jogo de montar um tanto arcaico.

Assim, nada é mesmo o que parece,
E é preciso cada fato interpretar
Para entender a teia que se tece.

Mas não pode apostar em seu juízo
Quem, por viver, como eu crê habitar
Uma casa de espelhos e de riso...
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14/05/2005

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Noites do meu pampa (de Alma Welt)

Noites do meu pampa, estrelas nuas
Que me vêm como sonâmbula vagar
Esperando me elevar à luz da lua
Pequena e branca gôndola no ar!

Me conhecem os peões e suas prendas,
Esta “louca de Albano”, desvairada,
Que sai de sua cama “toda em rendas”
Para andar no jardim, de madrugada,

Pois que não resisto aos seus apelos
Noites e luas magistrais desta planura
Que me puxam no leito os cabelos

E que, antigos, meus delírios alimentam
(sou eu a lenda viva que comentam)
Na sutil voragem branca de loucura...

27/02/2004

A Candeia (de Alma Welt)

Sob a luz aconchegante da candeia
Que tremula viva qual carícia,
Sou como a aranha em minha teia
Embora espere idéias sem malícia,

E nunca como presas, sem piedade,
Mas aquelas que vierem por encanto
Que é como nascem de verdade
Os poemas, o riso e mesmo o pranto.

E começo por pensar a natureza
Dessa luz tão doce e aliciante
Que aqui no casarão é ainda acesa.

E se, poeta, queimo velas e pestanas
É que percebo que a chama leva adiante
A vigília do Tempo em filigranas...

19/08/2005

A estirpe dos Sonhos (de Alma Welt

Os seres que povoam nossos sonhos
Pertencem a estirpes muito antigas.
Não sabemos o que os põe tristonhos
E o que os alegra em risos e cantigas.

Em mim os vejo sempre em algo misto
De uma Arcádia bucólica e um Walhalla
Onde ali no bosque ou cá na sala
Erguem brindes de honra ao mais bem-quisto.

Mas sei que o festejado é Dioniso
E não um guerreiro, e meu espanto
É que Orfeu ao lado jaz e eu o diviso

Na forma de um cisne apaixonado
Que no último momento lança um canto
E trai em arte seu amor desesperado.

Antípodas (de alma Welt)

Para ser a Alma mesma que me cabe
Devo cantar somente ou versejar
Acordar em ser e êxtase de amar
Para viver como se nada nunca acabe.

Todavia aquele espectro soturno
Teima em me seguir e acompanhar
Mesmo quando é dia e não seu turno,
Que é da noite seu tempo e seu lugar.

Mas eu sei que os polos se entrelaçam
E para um deles ser, o outro oponho,
Que sozinhos ambos doem e ameaçam.

E o mistério de viver nisto consiste:
Estar no mundo e saber que tudo é sonho,
O mundo é belo, e de verdade... nem existe.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O cavalo de fogo (de Alma Welt)

Por aqui o cavalo vai sem meta
Todo em chamas a vagar na pradaria
E me lembro do outro, o do poeta
Lima que seu livro incrível lia.

E hesitamos, eu, Rodo e Galdério
Em segui-lo à distância pela noite
Pois seu rastro deixado como açoite
É como aquela luz de cemitério,

De santelmo, como dizem marinheiros
E o gaucho que se esvai em pleno pampa
O avista nos momentos derradeiros

Quando segurando o ventre rubro,
E da coxilha a galgar última rampa
Segue o íncubo cavalo que descubro...

(sem data)

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Memórias farroupilhas (de Alma Welt)

Pelas trilhas em volta do sobrado
Que se eleva sobranceiro na planície,
A fachada como a face de um barbado,
Com sua decantada esquisitice,

Recoberta pela hera e não grisalha
Conquanto mais vetusta que a do Vati,
E que sobe a parede até a calha
Com sua textura cor de mate,

Eu perambulo nos dias e nas noites
Procurando senhas e vestígios
Dos antigos farrapos e prodígios

Que me são anunciados por murmúrios,
Gemidos de cilícios, seus açoites,
Os vôos da memória e seus augúrios...

17/11/2006

O haragano e o minuano (de Alma Welt)

O haragano é uma força deste prado,
Irrupção vital e alegre vento
Como fora verão, sem o tormento
Do nosso minuano, o outro lado

Do pampa quando mostra seu semblante,
Gélida, implacável e feia cara...
É então que ess’ outra face nos prepara
Para o longo inverno, duro amante.

E então acolhemos o monarca
E não o usurpador, embora feio,
Com nossos grossos palas e o mateio.

Mas, bah! quando ao açoite a nave geme,
No salão deste sobrado e minha arca
Lanço versos qual se ainda houvesse leme.


09/04/2004

Pássaros migrantes (de Alma Welt)

Pássaros migrantes do meu sonho!
Eu os avisto a voar em formação
A caminho do Norte e sua canção
Que conheço só do que disponho

De livros e poemas nas estantes
Desde que era a guria tão curiosa
Projetando vagar mundos distantes
Talvez como escritora já famosa...

Me alce, ó bando, e leve com você
Nesse vôo lindo em esquadrilha
Com formato sugestivo de um “V”

Do qual não almejo a liderança,
E humilde seguirei à maravilha
O sonho de que a Alma não se cansa...

(sem data)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A Noite do Maestro (de Alma Welt)

5

Noite perplexa, pálida e demente
A se estender da casa à pradaria
Desde o coração da minha gente
Concentrada no salão e escadaria,

Todos à roda do corpo tão presente
A que só eu via a grande espada
Entre as mãos no peito e repousada
Longitudinal e reluzente...

O maestro jazia inanimado
Mas a música de seus dedos se ouvia
A tocar num gravador ultrapassado,

Parecendo vir de longe, muito longe,
D’uma idade recheada de magia
Onde fora grão-senhor, guerreiro e monge...


03/01/2001

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Noites abrasadas (de Alma Welt)

4

Noites abrasadas, tão frequëntes
De minha grande dor transfigurada,
Quando o vão clamor pelos ausentes
Deixava o meu rastro pela escada.

Madrugadas doridas entre os galos
E os latidos longínquos na estrada;
Os minutos escorrendo pelos ralos,
Dedos e passos percorrendo o nada.

Depois o som há muito ausente do piano
Negro e mudo, a vir do tétrico Steinway
Que o mestre dedilhava e tanto amei,

Agora que só tons graves se ouvem
Tangidos pelo intruso Minuano
Como arremedo surdo de um Beethoven...

06/01/2007

A Cavalhada (de Alma Welt)

3

A cavalhada vem durante o sono
E passa por mim em sobressalto,
Que desperto então em pleno Outono
Com as folhas varridas para o alto.

E corro, bah! eu corro desde então
Das minhas horas em fluxo contrário
Que buscam varrer-me para o chão
Com seu vento forte e arbitrário,

O Minuano, sim, se diz meu dono,
E me quer não como às folhas, mas mulher,
Eu que prefiro os cavalos do meu sono

Que brancos como ondas me seduzem
E no abismal galope me conduzem
Aos páramos profundos do meu ser...

10/03/2005

Sob a figueira (de Alma Welt)


"O mundo de Alma Welt"-tela de Guilherme de Faria

Sob a figueira (de Alma Welt)
2

Sob a figueira em sonho estava ela,
A branca peregrina de uma noite,
Sentada de viés em sua sela
Os olhos a pedir que não me afoite.

E eu me aproximei arrepanhando
Minha longa saia de cetim
Com meus pés inseguros caminhando
Numa espécie sedosa de capim

Dourado, como a bruma que luzia
E envolvia tudo em doce flama
Que por si apaziguava e seduzia.

E eu ouvi a voz que se me canta,
E o coração, ao recordar, ainda inflama:
"Virás comigo em breve, Alma, Infanta."

O Gaucho Triste (de Alma Welt)

1

Vinha o gaucho ereto em sua sela,
Montado no vento e sem cavalo.
A noite carecia de uma vela
Que a lua era negra e sem um halo.

“Vai-te”, disse eu, “por quem me tomas?”
“Sou a prenda fiel de pai e irmão,
E não deixarei que escuras formas
Venham entreter meu coração!”

E o gaucho espectral continuava
Ali, com a face branca e triste,
E o zum de seu silêncio se arrastava.

Longos bigodes, chapéu de barbicacho,
No seu punho uma lâmina em riste,
A outra mão a cobrir o rubro facho...

05/02/2004

Nota
Acabo de descobrir um novo tesouro na Arca da Alma: um grosso maço de papel contendo sonetos manuscritos que pelo seu timbre e conteúdo resolvi entitular "Sonetos Delirantes da Alma".
A grande poetisa cultivava também uma vertente obscura e misteriosa, por vezes assustadora, na sua imaginação tão rica de mundos e timbres.
À medida que os for compilando e digitando, irei publicando numerados. Talvez tome a liberdade de entitulá-los, para efeito de melhor divulgação no Google, pois Alma não fez, nem sequer os numerou.
(Lucia Welt)